terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Cotidiano

Abro os olhos arenosos
numa manhã de segunda-feira
imersa em comezinhas rotinas:
o relógio sempre adiantado
minhas plantas que morrem
pela sede que o ponteiro das horas provoca
o café que engulo e me queima a garganta
e o horror de um ofício que me toma 
todo o tônus
dissolvido em seus tentáculos. 
E o sono, o sono sempre atrasado. 
Como se já não me faltasse o tempo
imponho-me mais e mais compromissos
e os anos passam ao largo dos planos esquecidos. 
Vejo-me preocupada com a aposentadoria
(agora entendo que os idosos acordam cedo 
pelo anseio do que lhes foi tolhido)
sobressaltada pela falta de filhos
estupefata 
por poder escrever 
apenas a caminho do trabalho
sobre uma vida isenta de rimas.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Torpor

Na próxima taça,
entorpeço meus sentidos.

Urro num suspiro:
“ama-me”,
mas nunca a mim
- que desconheço -
sempre a homens desmunidos.
“Ama a ti”, respondem
arrogando-se inocência.

Assim,
inabitada,
resta-me sorver o vinho.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Das falanges

Há tempos
nego-me a clareza do papel.

Sujeito-me à rotina.

Ocupo minha casa com sons burocráticos:
a água borbulhando, a torneira pingando, as xícaras contra os pratos.

Substituo abraços pelo odor do café.

Calo as músicas.

Enalteço as aulas de Direito Processual.

Miro minhas mãos
- sempre temi ter mãos envelhecidas -
eis que carregam o rastro das tintas...

Definitivamente,
o que não fez pouso em minha face
fez morada nas falanges.

sábado, 14 de março de 2015

Noite de lamparinas

Na noite em que a rua tanto ecoa
organizo, emudecida, lamparinas
projetando no interior de minha casa
as sombras de tua ausência que a habita.

Alinho cada peça de viagem
eis que a partida
embora longe
se aproxima.

Enquanto durmo
sinto teus olhos à espreita
embora em sonho, eu, suçuarana destemida,
encare a realidade fria.

Da despedida, trago planos quase etéreos
e respostas a pedidos infundados
não sei o que a distância vaticina
mas eis atado teu caminho à minha vida.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Apontamentos de uma mulher senil

Trago um cansaço de séculos.
Como uma anciã
ponho-me a contemplar
os infantes
que, em sua inocência,
cuidam da busca incessante
das palavras que definam
as palavras que revestem
o sentir.

Em lugar de apreciar
as contradições do vinho ao encontrar mornas papilas
descrevem – mecânicos –
as sensações enciclopédicas da enologia.

Em lugar de pousar os olhos
em paisagens nunca dantes vistas
tratam de aprisioná-las
em afoitas fotografias
das quais a beleza
se verbaliza.

Em lugar de degustar
a maciez de lábios
o arrepio ao toque
pronto declaram
em rede mundial
amor eterno (enquanto dure).

E em uma vida restrita
a verbetes de dicionário
os infantes não percebem que
Felicidade, Amor,
jamais serão compreendidos:
enquanto palavras.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Reencontro

No samba
descobriu:
no desenlace
o que escorria
de seus olhos
não era a pena
mas o fruto
do esforço
de ter sido
o que não era.

domingo, 22 de junho de 2014

Fragmentos de uma separação - Parte I

Todos os cobertores e lençóis
adormecidos nos armários
hoje cobrem este meu corpo
despido de mulher
revelando-me menina.