quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Ser índio


I

Minha língua
é o canto da mata.
Minha floresta
é território
é cultura.

Cada rio
cada trilha
cada raio de sol e lua
é um pranto
é um riso
é a face divina
e minha própria persistência.

Minha terra é minha nação
e quando luto
fincando raízes
até meu sangue
tocar meus mortos
clamo pela paz liberta
e defendo a vida
a não ser jogada à própria sorte.

II

O fazendeiro
que se esconde
detrás de um pistoleiro
quer o domínio
e cifras
a brotarem dos cativeiros.

Quer suicídio
assassínio
e o extermínio
por ventres violados.

Em atos brutos
cala a beleza
de danças e cultos.
Deseja terras
não terra.
Craveja o solo
sem apreço
legando apenas
um futuro de miséria.

domingo, 28 de outubro de 2012

Fernanda e Daniel

Senhoras e senhores
rapagões e senhoritas
venham ouvir num pulo só
que esta história é bendita.

Nela verão o Cupido,
uma donzela atrevida
e o Rei do bacalhau!
Todo mundo jungido
num destino tecido
pelos acasos da vida.

Ela traz em seus cabelos
a cor viva e felina
um dourado qual o sol
que o agreste calcina.

Ele era no Cangaço
um destemido guerreiro
pois trazia mais fio branco
que um velho feiticeiro.

Ela era faladeira
bem sarrista, mas dengosa
qual o pai, um piadista
e a mãe, tão amorosa.

Ele era um mistério
engraçado e o mais cortês
mas era tão muquirana
quanto um velho libanês.

E um dia se encontraram
numa festa, um São João,
e o Cupido ouriçou-se
começando a reinação.

Foi paixão a uma vista
coisa tão imprevista
quanto a chegada benquista
do rei Dom Sebastião.

Eram agora prisioneiros
um ao outro bem atado
querendo formar um bando
com quinze filhos falando:
Eita xamego arretado.

E para encurtar esta prosa
o cantador lhes deseja
uma vida cor de rosa
apaixonante e benfazeja
que cada noite e cada dia
sejam doces como mel
plenos de paz e harmonia,
Fernanda e Daniel.

E agora ao rega-bofe
que o casal com tanto empenho
preparou aos convidados
ao som de samba, forró
e um hip-hop suingado
regado a muito chope
e à alegria de quem veio.

Este poema, uma homenagem ao casamento da minha irmã, foi fruto de uma parceria com o meu pai.

sábado, 20 de outubro de 2012

Possibilidades (Wislawa Szymborska)

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão.

Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 87-88.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Das horas


O relógio marcava
as sete e meia da noite.

Às sete e meia da noite
meu mundo caía.
Eu recusava olhar em teus olhos
a derrubada dos pilares da minha fundação.

Em meu abraço,
que por si te rogava
ser mentira,
sussurrava
o “eu te amo”
até o murmúrio
transformar-se em grito.
Mas mesmo em teu choro
permaneceste altivo
observando
uma a uma
minhas paredes ruindo.

Às nove horas da noite
meio sorriso nos lábios
partiste.
Vi em teus olhos
o alívio do fim.

Persiste a noite.
Mas se esquecer
é a mortalha
tecida
pelo medo
ao ainda
amar-te
me faço forte.

domingo, 14 de outubro de 2012

Fim do amor


Ponho-me diante do papel
caneta em punho
no afã de articular a palavra
que abrirá a porta do verso.

A mente vagueia os temas mais fúteis
a novela
o futebol
as eleições
e nada
nada a dizer num poema:
não trago em minha rima o amor
ou a vaidade que se exprime pelo ódio.

Não podes ao menos
ser o desconhecido
que, em sua solidão felina,
espreita meus olhos e
imediatamente
craveja minha mente
com a ideia do que seja sua vida.

Está constatado:
em ti
não vejo mais poesia.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Condução


Temi
ao abrir a porta
reverenciar a pena que
por dias
curvou-me quase ao chão.

Surpresa
fui ancorada pela firmeza
de uma casa vazia
ansiando por mim.

O silêncio impunha a mudez
até mesmo aos relógios
demandando que cada cômodo
aguardasse minha ordem de condução.

Reencontrei
em meu quarto
a pureza sem perfume.
Em minha cama
acariciei as fibras do linho
perdoando meus lençóis
pela ditada
tortura
de tua lembrança.

Ali
completamente plena
não pude definir
o exato instante de tua partida.
Apenas tive a certeza de
finalmente
ter consentido
a nossa liberdade.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Urro


Tem piedade e dita
o nome do reagente
capaz de neutralizar
teu cheiro em minha pele e em meus lençóis.

Diz
que não dedicaste
ao menos um resquício de memória
aos contornos de meu corpo
à textura de meus lábios
ao gosto de meus seios em tua boca.

Grita
que todas as pequenas coisas do cotidiano
- tomadas quebradas
chuveiros queimados
chicletes perdidos
mentiras noticiadas nos jornais -
tenham sido suficientes para esqueceres de mim.

Urra
para que eu escute
que não fui nada além de um deleite
que não viste nada além de minha carcaça
que desejaste pernas mais torneadas
cinturas mais finas
sorrisos mais falsos
olhares menos selvagens.
Que sonhaste com amores impossíveis
e que meu amor afronta a lógica do destino que ditaste para ti.

Reconhece
que não suportaste conviver com a ideia de felicidade
pois ela seria por demais burguesa
já que a realidade
esta crua,
dura como concreto, realidade
somente aceita obrigações.

Aceita
que tua vida
escapará aos poucos pelas frestas que
por acidente
deixarás abertas pelos caminhos
e que, ao fim,
não restará nada
eis que, conscientemente,
terás fugido de ti.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O amor


O amor escancarou a porta daquele quarto escuro,
formou desenhos de dedos no quadro empoeirado
até que o sonho renascesse em imagem.
Pouco a pouco,
desempacotou músicas nunca mais ouvidas,
livros que rangeram quando abertos,
desvendou pessoas,
clareiras revelando a mão dupla dos caminhos
e o sabor ousado de sentidos clandestinos.

Em êxtase, o amor foi recebido,
desnudando-se sua virtuosa riqueza de estilo.
Mas bem se sabia que o espetáculo
não passaria de uma tragédia
anunciando, enfim, o seu clímax:
melhor seria que amar fosse verbo intransitivo.